Jane Oliveira diz que demissão foi motivada por transfobia, relata assédios sofridos e planeja retorno à tropa: 'voltar para desfazer uma injustiça'
Em Guanambi, onde cresceu num lar cristão, com os pais e três irmãs, Jane não conseguia visibilizar sua história. Todos apontavam dedos e culpas. “Todo mundo me olhava com os olhos virados e eu sempre fiz minhas coisas honestas”, lembra.
Sem emprego, ela morava de favor na casa de uma amiga. A decisão negativa do juiz foi a gota d’água. Era o momento do embarque que ela tanto tinha evitado.
Briga judicial é inédita no estado
Jane nunca quis ser policial, mas a ideia de uma vida estável financeiramente agradou. Foram os amigos da graduação em Educação Física, na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), que sugeriram o concurso. Todos fizeram a prova e ela passou.
O ano era 2008 e a PM da Bahia não admitia pessoas transexuais no efetivo. No último concurso, realizado em 2019, a instituição permitiu, pela primeira vez, que os candidatos usassem seus nomes sociais.
Apenas há seis anos, um decreto federal passou a obrigar o reconhecimento do uso do nome social e da identidade de gênero na administração pública. As forças de segurança pública não criaram nenhuma política específica para contribuir com a permanência de transexuais em seus quadros.
A PM não respondeu nenhum dos questionamentos enviados pela reportagem - nem sobre a diversidade de gênero na corporação, nem sobre o caso de Jane, que protagoniza uma briga judicial inédita no estado da Bahia, a de uma ex-policial que afirma ter sido demitida por ser quem ela é.
Nos primeiros anos como policial, Jane recebia apelidos pejorativos, sofria preconceito, mas, segundo ela, “nada tão grave” quanto o que ocorreu com a chegada de um novo colega. Em 2012, quando iniciou o processo de transição de gênero, a situação piorou.
“Comecei a me afirmar como Jane e aí o assédio foi ficando pior. Ele me impedia de descansar, me chamava de viadinho, eu tinha medo”, conta Jane.
O policial ao qual Jane se refere está, atualmente, impedido de trabalhar porque não comprovou ter se vacinado contra a covid-19. A imunização é obrigatória aos servidores públicos na Bahia, mas 141 funcionários da PM, como ele, não se vacinaram. Por isso, foram afastados, em janeiro deste ano.
Esse agente, segundo Jane, a assediava moral e sexualmente. Chegava a tocar nos seios dela e, sempre que fazia isso, dizia: “Deixa eu ver os peitinhos dessa menina”. O assédio tinha outras formas e Jane denunciou a situação a superiores.
Após as queixas, ela passava períodos longe do policial, mas a mudança não era definitiva e os problemas seguiam. Até que, numa noite de folga, ela e amigos foram a um bar, em Guanambi. O futuro seria desenhado naquela madrugada.
Da demissão ao desemprego
Já passava de 1h da manhã quando Jane avistou o colega entrar no estabelecimento. Um conflito teve início quase imediatamente e ela não recorda exatamente como, porque tinha bebido, mas saiu do bar presa por “desacato ao superior hierárquico”.
Na queixa à 17ª Companhia de Polícia Militar, o então cabo acusa a colega, abaixo no nível hierárquico, de ofendê-lo. Jane, no dia da prisão e todas as vezes em que foi questionada, afirmou que ele a perseguia. A confusão gerou um Processo Administrativo Disciplinar (DAP) contra Jane.
O artigo número 298 do Código Penal Militar (CPM) define que desacatar e ofender a “dignidade e o decoro” de um superior é crime passível de reclusão de até quatro anos. A pena é agravada se o superior é oficial general ou comandante da unidade.
Jane esperou o resultado do processo em atividade e esperava que a penalidade, se existisse, fosse mais branda. O resultado, em março de 2018, mostrou o contrário: a partir dali ela não fazia mais parte da PM. “Caiu o meu chão, minha vida virou”, conta Jane, aos prantos.
A demissão da então policial foi amparada no Artigo 57 do CPM, por “insubordinação ou desrespeito grave contra o superior”. Quatro meses depois da demissão de Jane, o colega que ela acusa de assédio - aquele que não se vacinou contra a covid-19 - foi promovido a sargento. A PM não respondeu a quantidade de policiais demitidos por insubordinação ou desrespeito ao superior.
“Não é comum um policial ser demitido pela razão que Jane foi. Em nenhum momento o processo [administrativo] fala do gênero de Jane, é um preconceito travestido de desrespeito ao superior hierárquico. Ela é pioneira, é a primeira [mulher transexual na PM da Bahia] que se tenha registro público”, afirma Dinoermeson Nascimento, advogado de Jane.
Presidente da Associação Nacional de Transexuais e Travestis (Antra), Keila Simpson afirmou que não existe dados sobre pessoas transexuais na polícia - os casos conhecidos são aqueles que repercutiram na imprensa. Um dos mais populares era o PM paulista Paulo Vaz, 37, homens trans encontrado morto na última terça (25) - a suspeita é de morte por suicídio.
“Não temos dados de polícias na polícia. Na verdade, não temos dados que não sejam de assassinatos”, lamentou Keila.
Ano passado, 13 pessoas trans ou travestis foram mortas na Bahia, o segundo estado mais violento no ranking nacional, atrás de São Paulo, com 25 assassinados. No Brasil, foram 150 mortes.
PM será questionada pela OAB
Na semana passada, Jane e o advogado dela se reuniram com representantes das comissões de Direitos Humanos e Diversidade Sexual e de Gênero da Ordem dos Advogados da Bahia (OAB). Ives Menezes, presidente do segmento relacionado à diversidade, irá oficiar o comandante-geral da PM, Paulo Coutinho, para “entender quais procedimentos a corporação adota, externa e internamente, para pessoas transexuais”.
“Queremos saber se eles têm noção do contingente de pessoas, se existe política de apoio a elas. Pretendo que tenhamos uma reunião para que exista algum avanço nas políticas de inclusão”, compartilha Menezes.
Depois da demissão, Jane nunca encontrou um trabalho fixo e, por medo, não falava publicamente sobre os assédios e a transfobia sofridos. “A PM é vingativa”, justifica a ex-policial. Os amigos mais próximos, da época do curso de formação da PM, a incentivaram ao longo dos anos.
Em Guanambi, Jane passou a trabalhar como diarista e voltou para casa dos pais, pois não conseguia bancar uma residência.
Como nem sempre encontrava trabalho, a situação piorava a cada dia. Os amigos, quando podiam, ajudavam. No fim do ano passado, Jane foi morar numa casa emprestada por um pastor. A mãe dela intermediou o empréstimo. Mas a permanência não durou. O pastor exigia que Jane “vestisse roupas de homem”.
Em Salvador, Jane encontrou abrigo com uma tia, que já vivia na cidade. Aqui, ela não só tenta ser readmitida PM, como busca uma vaga de trabalho. Jane não concluiu a formação em Educação Física, mas recebeu o diploma de pedagoga, também pela Uneb, em 2018. “Eu preciso de um emprego. O fato de eu querer ter o direito a meu trabalho como PM de volta é desfazer uma injustiça”.
Passado, presente e futuro
O caminho de pessoas transexuais dentro das forças de segurança pública começou a ser pavimentado em 1998, no estado de Goiás. Depois de 22 anos na Força Aérea Brasileira (FAB), Maria Luiza comunicou aos superiores sua identidade de gênero. Foi a primeira pessoa transexual na FAB. A resposta institucional veio em seguida: um laudo médico respaldou a aposentadoria compulsória de Maria por “incapacidade”.
Maria brigou para permanecer na ativa. A disputa judicial se arrastou por duas décadas e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu nela uma vítima de “discriminação”.
Quando a Justiça Federal de Brasília determinou que ela não poderia ser afastada das atividades, já não havia tempo hábil. Maria tinha 48 anos, idade máxima para atuar como cabo. A aposentadoria, então, foi mantida. A luta de Maria Luiza é contada no filme que leva o nome dela, do diretor Marcelo Díaz.
Outras mulheres transexuais também tentaram, sem êxito na maioria das vezes, manterem seus postos. Como não possui política relacionada a servidores transexuais, um dos artifícios institucionais utilizado pelas corporações é afastar funcionários por alegada incapacidade ou criar situações que levem ao afastamento ou demissão.
Ano passado, a sargento Alice Costa, do Mato Grosso do Sul, foi afastada. A depressão e crises de ansiedade sofridas por ela, que havia assumido sua identidade de gênero, aparecem como algumas das justificativas usadas para impedi-la de trabalhar. A defesa jurídica de Alice é assinada por Bianca Figueira, capitã da Marinha aposentada compulsoriamente pelo mesmo motivo que a cliente, no Rio de Janeiro.
As histórias se repetem. Há cinco anos, Bruna Benevides, mulher trans, tenta judicialmente continuar na Marinha. No laudo médico, ela aparece como incapacitada de exercer suas atividades, embora esteja com pleno vigor físico. A Marinha do Brasil não respondeu à reportagem.
“A decisão foi revertida, mas a Marinha tenta retardar meu retorno. O que mais chama atenção é que se tenta dizer que as forças são isentas de discrição”, afirma Bruna, natural do Ceará, que aos 17 anos saiu de casa para entrar na Marinha, para “fugir da repressão”.
Hoje, Bruna trabalha em organizações pela defesa dos direitos de pessoas transexuais. Ao ouvir parte da trajetória de Jane, e relembrar a própria, Bruna diz:
“Vivemos o não reconhecimento da nossa identidade. Sempre haverá a criação de uma narrativa tendenciosa. Nós, mulheres transexuais, somos assediadas e, quando respondemos, somos colocadas como as assediadoras. É uma forma da transfobia nos deslegitimar”.
Jane não conhece Maria Luiza, Bianca, Alice, nem Bruna. Mas acredita que sua briga não é só por ela, mas por todas que virão. "Não posso mais me calar", ela diz. Aos poucos, em Salvador, a ex-PM se adapta a uma nova rotina. Na maior parte do tempo, estuda - ela quer passar num concurso público.
Os livros preferidos - como os romances policiais de Agatha Christie - ficaram em Guanambi. A bíblia, ela lê todos os dias. É a leitura favorita dela.
No último domingo, convidada por uma amiga, Jane foi a um culto evangélico. Enquanto assistia à pregação, passado e presente se confrontaram à sua frente e uma passagem bíblica não saía da cabeça dela: “Maldito é o homem que confia no homem”.
Fonte: O Correio